Como os procedimentos estéticos faciais podem ser ferramentas poderosas no processo de afirmação de gênero
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Investigamos os aspectos técnicos e psicológicos desses protocolos aliados da jornada de transição e no processo de autoestima e identificação com a própria imagem
Há sete anos, a dermatologista Bianca Viscomi recebeu um pedido até então inédito em seu consultório em São Paulo. Um paciente gostaria de realizar um procedimento estético facial de modo que seu rosto ficasse mais andrógino, mesclando traços considerados pela sociedade como um híbrido entre os sexos feminino e masculino. A médica, então, decidiu pesquisar na literatura científica quais eram as diretrizes e orientações de segurança para adotar diante do pedido e criar um protocolo individual para essa necessidade. Para a sua surpresa, entretanto, quase não existiam estudos ou artigos que abordavam a masculinização e a feminilização faciais para afirmação de gênero que pudessem dar suporte aos profissionais na mesma situação.
"Existiam técnicas descritas para pessoas cis, mas não uma bibliografia ou publicação direcionada às pessoas trans. A partir de então, passei a desenvolver, pesquisar e estudar as necessidades dessa comunidade a fim de orientar de forma responsável os médicos que realizam esse tipo de procedimento", conta a médica, pioneira e hoje referência na área. Seu projeto, desenvolvido em parceria com a farmacêutica Merz Aesthetics, focou no estudo da anatomia das faces para tornar as intervenções mais seguras e eficazes de acordo com a demanda de cada paciente.
Atualmente, já é possível encontrar artigos relevantes que abordam temas como cirurgias plásticas, procedimentos minimamente invasivos e até linguagem neutra dentro da literatura médica. Mas o cenário está longe de ser o ideal. Segundo um levantamento feito pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp), em 2021, cerca de 1,9% da população adulta brasileira, aproximadamente 4 milhões de pessoas, se identifica como transgênera ou não binária. No entanto, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) só passou a incluir perguntas sobre sexualidade e identidade de gênero em suas pesquisas há dois anos, dificultando a visibilidade dos dados oficiais.
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Uma pesquisa rápida na internet ainda nos revela que não há informações precisas sobre a quantidade de procedimentos estéticos realizados em pessoas trans no Brasil, embora o Processo Transexualizador já esteja disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). Instituída pela portaria nº 1.707 e nº 457 de agosto de 2008 e ampliada em 2013 pela portaria nº 2.803 do Ministério da Saúde, a política pública garante o acesso da população transexual a procedimentos como terapias hormonais (conhecidas vulgarmente como "hormonização"), cirurgias de modificação corporal e genital, bem como o acompanhamento multidisciplinar.
Enquanto as cirurgias possuem riscos inerentes, alto custo e, em sua maioria, são irreversíveis, outras estratégias menos invasivas têm surgido como ferramenta importante para o autoconhecimento e o alinhamento com a identidade de gênero no processo de transição e para a construção e afirmação da autoestima de parte dessa comunidade.
QUESTÃO DE SAÚDE MENTAL
"A relação das pessoas trans com a autoimagem ganha uma camada muito mais complexa, porque não se trata apenas de estética, mas também sobre existir em uma cultura que te demoniza e rejeita. Viver em uma sociedade que questiona constantemente quem nós somos gera um impacto enorme na construção da autoestima e da segurança. A percepção da própria imagem, nesse contexto, não está desvinculada da nossa dignidade e da nossa saúde mental. Conseguir se reconhecer no próprio corpo, se olhar e se ver do jeito que se é, pode ser uma ferramenta de fortalecimento, de cuidado e, muitas vezes, de sobrevivência", explica a psicóloga Julia Bueno, mestra e doutoranda em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). "Por isso, os procedimentos estéticos, para muitas pessoas trans, não são uma questão de vaidade pessoal, mas uma forma de construção de saúde mental, de autocuidado e até de redução de danos diante de uma sociedade que insiste em desumanizar nossa imagem", continua.
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Há cerca de dois anos, Marina Elisei, de 27, se sentiu preparada para começar um novo capítulo da própria história e deu início ao processo de transição de gênero. Desde criança, ela pedia para experimentar os acessórios da mãe e usava meia-calça na cabeça para simular um cabelo longo.
"Isso acontecia em um lugar de muita inocência, mas acho que sempre tive a sensação de que faltava alguma coisa na minha vida ou que existiam coisas que eu gostaria que fossem diferentes", relembra. Anos mais tarde, a maquiagem surgiu como uma forma de explorar elementos tidos como femininos. Na frente da penteadeira, entre uma sombra e um batom, a gerente de conteúdo brincava com os produtos de beleza e passava a ver o próprio rosto de uma nova maneira. Aí vieram os alongamentos nas unhas, os fios ficaram compridos e as sessões de laser se tornaram recorrentes. O empurrãozinho que precisava para se sentir mais confiante, mais ela mesma.
Por conta de uma discordância maxilar que gerava dores de cabeça e problemas respiratórios, Marina precisou encarar o centro cirúrgico há alguns meses para realizar a cirurgia ortognática, um procedimento que corrige e reposiciona os ossos da mandíbula. "Eu estava morrendo de medo, mas durante uma das consultas o médico disse que meu rosto ficaria muito mais feminino e qualquer receio que eu tinha em fazer a cirurgia pelo aspecto funcional foi embora. A gente atribui o rosto longo ao masculino e como eu perdi muito queixo e minhas bochechas ficaram mais projetadas, meu rosto ficou bem mais redondo", conta.
O pós-operatório fez com que a criadora de conteúdo precisasse ficar longe dos pincéis e das maquiagens, um porto-seguro. "Fiquei me sentindo feia, disfórica, não estava entendendo meu novo rosto. Só fui começar a gostar da minha nova imagem quando pude voltar a me maquiar e explorar maneiras diferentes de aplicar os produtos. Comecei a me apaixonar pelo batom vermelho porque antes achava que chamava muita atenção para o meu queixo e agora amo uma sombrinha esfumada. Estou muito mais confortável comigo mesma. Foi um convite muito legal não só para o meu rosto, mas para o meu corpo também por conta do hormônio que iniciei. É uma enxurrada de informações para absorver, mas fico feliz que esteja acontecendo em um momento que tenho mais maturidade para lidar com tudo o que estou vivendo", completa.
O PAPEL DA DERMATOLOGIA
Bianca Viscomi explica que a dermatologia é fundamental para pacientes que estão passando por um processo de afirmação de gênero. Isso porque as terapias hormonais interferem diretamente na pele, aumentando a prevalência de doenças como a acne, por exemplo. Além disso, já é possível realizar procedimentos minimamente invasivos para feminilização ou masculinização, que são muito vantajosos pois são reversíveis e podem ser feitos gradualmente, com um custo muito menor do que em relação a uma cirurgia plástica e com um tempo de recuperação mais tranquilo.
"A toxina botulínica, os bioestimuladores de colágeno e os preenchedores à base de ácido hialurônico são alguns dos ativos que podemos utilizar. O que muda entre homens e mulheres trans é o plano de tratamento, os locais de injeção e as técnicas que serão utilizadas. O ponto de partida para definirmos o protocolo é o estudo anatômico da face de cada paciente e, a partir daí, traçamos uma estratégia para que os traços fiquem mais femininos ou masculinos", detalha.
Ao longo dos últimos sete anos, a médica foi colecionando aprendizados e descobertas durante os estudos e a prática dentro do consultório. A primeira diz respeito à técnica: para ter um bom resultado, é preciso associar os procedimentos em momentos diferentes e não fazê-los em uma única sessão. "Na minha metodologia, começamos com a toxina botulínica, depois utilizamos os bioestimuladores de colágeno e, por fim, os preenchedores de ácido hialurônico, que volumizam. Dessa forma, consigo reposicionar o funcionamento da face antes de preenchê-la", detalha.
Outra descoberta importante de Bianca é que nem sempre o objetivo do paciente transexual é ficar com o rosto de uma pessoa cisgênero. "Para muitas mulheres trans, uma feminilização sutil já é o suficiente para que elas se reconheçam e que tenham um rosto extremamente interessante, cheio de personalidade e bonito. O que eu mais aprendi foi fugir do estereótipo cis e encontrar o caminho de cada indivíduo", finaliza.
Julia Bueno ressalta que para as pessoas trans que têm acesso, esses cuidados podem representar um verdadeiro respiro de liberdade e autocuidado. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que essa possibilidade não está ao alcance de todas, e a pressão para que atendam a padrões estéticos rígidos pode aumentar o sofrimento de quem não os faz, seja por questões econômicas, sociais ou de saúde. Por isso, é essencial valorizar cada trajetória, sem que os procedimentos se tornem uma medida de "verdade" ou legitimidade da identidade.
DISFORIA E IDENTIDADE
A sensação de inadequação e não identificação relacionada ao corpo é chamada de disforia. Ela nasce de um sistema que atua sobre os corpos das identidades trans, impondo expectativas de como deveriam ser. É um sofrimento que não vem só da relação com o próprio corpo, mas da pressão social, estética e econômica para adequá-lo a padrões que nem sempre são possíveis.
Outra condição comum, que pode ser confundido, é a dismorfia. Ela acontece quando essa pressão estética vira uma distorção da própria percepção e imagem, fazendo com que a pessoa enxergue defeitos, insuficiências e insatisfações que, muitas vezes, são fruto direto desse olhar social violento.
Nem toda pessoa trans sentirá isso e é importante reforçar que, como toda comunidade, ela é heterogênea. Entretanto, são dois elementos que podem pesar na decisão de passar por procedimentos estéticos ou não. Nesse momento, acompanhamento psicológico e acolhimento são fundamentais.
Para quem deseja realizar qualquer procedimento médico, a recomendação das especialistas é escolher profissionais que entendam a complexidade dessa jornada, além de um suporte multidisciplinar que ofereça apoios afetivo e mental. É importante também se certificar de que não haja injeção de produtos definitivos, como silicone ou polimetilmetacrilato (PMMA), e que a equipe de saúde tenha experiência em tratar eventuais complicações caso elas ocorram.
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